sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Implicações psicológicas e sociais de ser atendente 0800 (telemarketing)

Talvez o primeiro emprego mais frequente da era 2000 seja o de atendente de serviços (ou desserviços) de atendimento ao público, conhecidos como 0800 ou de telemarketing.

Pré-requisitos

O salário baixo e o amplo leque de opções de atendimento, em todos os setores (até religioso) tornam o rol de pré-requisitos apenas restrito ao mais óbvio. A pessoa não pode ter gagueira, nem rouquidão. Até o raciocínio lento é contornado pelo automatismo fornecido por uma cartilha bem limitada, complementada por setores igualmente limitados de ação.

Não é atoa que, quando a conversa com o cliente tende a se expandir, o atendente diga que "isto já não é comigo", ou "não tenho acesso a este setor". Isto torna o recrutamento de pessoas bem limitadas possível. Você já deve ter conversado com atendentes até com certo grau de retardo, e julgou apenas que estavam seguindo regras. Não, eles realmente tinham uma limitação.

O sorteio

Apesar de se dimensionar os tempos e redirecionamentos de chamadas para manter os atendentes ocupados o máximo de tempo possível, é feito um sorteio no sistema, para garantir ao máximo situações diferentes quanto à hora do dia e dos problemas que possam ocorrer nos mesmos horários. Também é garantida uma pausa de alguns minutos no atendimento, devido aos constantes afastamentos por estresse. Esta ocupação (jamais direi profissão) é extremamente desgastante.

A introdução

O início da conversa é sempre o de "resgate de informações". Apesar de você entrar com seus dados no telefone, tudo é pedido de novo. Isto dá tempo para o atendente se afirmar na nova conversa, e tentar desarmar o coitado do cliente.

O problema não é seu; o problema é do cliente

Esta é uma muleta psicológica para tentar tirar a culpa que possa nascer no coração do atendente. Então, no treinamento, o instrutor, como um pastor, doutrina o atendente a se eximir de qualquer culpa. Ele é só um interlocutor entre o cliente e a empresa.

Mas na prática, conforme a articulação do cliente, o atendente pode ser minado aos poucos por clientes cada vez mais hábeis na palavra e na argumentação. Talvez os dois anos, tempo máximo recomendado na atividade de um atendente, possam ser o escudo ideal. Mas nunca se sabe.

Primeira implicação

Mas um problema que passa por você não o torna participante do mesmo ? Você está ali, como interlocutor, à toa ? Será que as coisas que você assiste ou presencia são meros acasos, e qualquer um poderia estar no seu lugar ?

Este tipo de pensamento poderia tirar a identidade de sua própria vida, pois você estaria admitindo que "qualquer um poderia ser você", ou "você é qualquer um". Ou seja, a experiência seria mais que a pessoa.

É preciso lembrar que "o destino conspira com perfeição cada cena que vivemos". Você veio de um momento especial do seu pai com sua mãe, de momentos especiais de sua infância, e de interações complexas entre destinos de outras pessoas, tão especiais quanto você.

Sem isto, o ser humano é só uma formiga, que carrega folhas para lá e para cá, sem objetivo e sem sentido.

Tudo tem uma resposta

A tese da comunicação de atendimento ao público passa por uma perigosa crença de que "tudo pode ser respondido", e quando não tem resposta já está respondido.

Acontece que na vida isto não é bem assim. Quando este atendente se ver, ele mesmo, envolvido em uma "sinuca de bico", e responder qualquer coisa, até uma das frases feitas de seu atendimento, ele pode se enrolar mais ainda no problema em que se meteu.

Imagine tal atendente, em um novo emprego, no futuro, respondendo ao seu chefe imediato, quando cobrado por um serviço que não fez, com a seguinte frase:

"Nós vamos estar providenciando", ou então, "esta sua exigência não consta do contrato", ou então, "sua reclamação está registrada, anote o protocolo".

A rotina de atendimento ao público, pelo menos no Brasil, é pautada pela máxima:

"O Fornecedor avalia se é conveniente. O cliente espera. Cliente insatisfeito reitera."

Este ciclo é repetido até que o cliente se canse.

Agressões verbais não passam sem marcas

Durante o treinamento, toda uma "couraça psicológica" é estimulada a se estabelecer na mente do atendente. Se o cliente se enfurecer, o MUDO é acionado. Se o volume de som diminuir, o operador reativa o áudio. Mas o atendente deve ter a consciência de que, mesmo se achando fora do problema, ou apenas como intermediário, ele está recebendo uma carga emocional, pois o problema é real, e tem uma pessoa real por detrás dele. Se escolheu esta atividade, deve saber, obviamente, que se o serviço da prestadora estivesse bom, não estaria havendo uma reclamação.

No caso dos Planos de Saúde, o ódio do cliente pode marcar o atendente profundamente no futuro.

Mai a frente voltaremos ao "conteúdo emocional".

Se for cancelamento, enrole e desligue

Uma coisa é certa. Se já não existir nos registros do cliente, que vale a pena cancelar o serviço, pois do contrário é a perda de um processo judicial, a ligação para cancelamento não se completará sem o auxílio das agências reguladoras.

Desligar a chamada em andamento é uma perigosa metáfora de estar "matando o cliente". Ele vai se enfurecer, e então caímos no elemento "conrteúdo emocional"

Conteúdo Emocional

Apesar de parecer uma simples ligação telefônica, um diálogo de reclamação ou "crise pontual de oferta de serviços" é uma troca de conteúdo verbal e emocional. Palavras constroem, e palavras destroem. Simples mentiras já provocaram brigas e mortes. Emissor e Receptor não se vêem, mas pior que isto, entram em interação pelo VERBO.

A interação Verbal é o atributo que diferencia o humano do animal. Mesmo cortando o "surto lícito" do cliente, o problema foi gerado pelo contratante do atendente. O atendente forma um complexo com o seu patrão, pois é como um escudo. O escudo protege o patrão, mas leva todas as pancadas e arranhões.

Se o atendente absorver o treinamento e pensar "não estou nem aí prá cliente estressado", ele vai ter que se considerar menos humano do que aquele que está do outro lado da linha. Se você pensa que é uma mosca, isto não vai possibilitar que você saia por ai voando. Da mesma forma, se o atendente pensar que é invulnerável por detrás do bocal do fone, isto não vai protegê-lo da carga emocional negativa e lícita emitida pelo cliente.

As licenças por depressão e síndrome de pânico comuns em atendentes de 0800 atestam a total verdade deste argumento.

Muitos atendentes são instruídos a dizer: "Compreendo, mas ..."

A verdadeira compreensão é ser um co-participante da situação, e é conhecida como COMPADECIMENTO. É o "chorar com os que choram". Ou seja, tem que haver um mínimo de comprometimento com o cliente, pois ele paga o serviço que seu contratante presta, bem ou mal, honrando ou não o cliente.

Atendente como consumidor

Quando o atendente, ele mesmo, se sentir lesado, um dia, e enfrentar a situação "no espelho", pode sentir uma enorme culpa.

Pense no atendente de Planos de Saúde, acostumado a defender o patrão, ajudando a negar direitos que os clientes tem. Num belo dia, ele mesmo, liga para o Plano de Saúde da mãe ou do pai, em uma situação de urgência, e recebe a seguinte resposta como retorno:

"Nos desculpe, mas o Plano não cobre este exame que você está pedindo"

O trauma, o estresse produzido por esta negação, acrescido da carga emocional de todos os que receberam de sua boca a mesma resposta, pode desequilibrar uma pessoa sem o caráter devido, que dirá de uma pessoa que tem caráter.

Na vida, nossos atos são como BUMERANGUES, aquele artefato que uma vez lançado longe, volta por detrás da nossa nuca e nos derruba.

Recomendação

Se você tenciona trabalhar em atendimento 0800, arranje outro interesse. Vá trabalhar em instituições que tratam de doentes. Você vai ter contato direto com pessoas, e elas vão te abençoar pela ajuda que você está dando.

Já no serviço de 0800, você poderá ser amaldiçoado várias vezes ao dia, atraindo doenças graves para o seu corpo, para a sua mente, e o pior: PARA A SUA ALMA.